Acabei agora de trabalhar. Ao ligar a televisão, apenas o tom dos jornalistas parecia deixar antever que algo de fantástico tinha acontecido. Fiquei assim a saber que a Alemanha tinha sido eliminada do Mundial de Futebol, que em Berlim era a tristeza que passeava pelas ruas numa (talvez) solarenga tarde, e que existia um certo tom de contentamento geral dos homens que habitualmente relatam estas coisas da bola. Não é, de facto, coisa que consiga perceber muito bem.
Toda esta reação em torno do gigante caído retrata um pouco de nós mesmos...na rotina dos dias, vivemos uma tão intensa quanto relativa (ou ausente) positividade que se respira no que de artificial nos rodeia, alimentando todo um conjunto de objetivos em que nunca pensámos, mas que com toda a certeza vamos conseguir atingir se muito trabalharmos, abdicando dessa "entidade negra" chamada zona de conforto (aquela a que por vezes temos tanta necessidade de voltar, para sarar as nossas feridas), para transcendermos o estado presente das nossas vidas...as fórmulas rodeiam-nos, e os resultados da sua aplicação multiplicam-se em ainda mais fórmulas, num caminho de nenhures, rumo ao sucesso...também aí reside uma parte importante das mecânicas nacionalistas que vão emergindo no nosso tempo, e que nada mais são do que o apoderar por parte de alguém destas dinâmicas coletivas, algumas vezes aplicando-lhes um símbolo. Mas a isso voltarei outro dia.
Neste processo mental de luta permanente, algures entre David e Golias, em cujo triunfo do underdog é considerado ao nível pessoal, vamos esquecendo como se erra, e como refletir nesses erros...esquecemos igualmente de como a vida nos brinda com a sua ciclicidade, que nos banha nas ondas de um mar interior que gostamos de ver ilustrado no silêncio da praia. Saber observar esse além, na natureza que nos rodeia e na humanidade que nela desponta, é o que nos faz evoluir, sonhar, pensar e amar um mundo melhor...sempre renovando-se, e levando-nos com ele.
Confesso que vejo com alguma estranheza as ondas de saudosismo que amíude invadem os que me rodeiam...não sendo eu pessoa propriamente virada para as recordações, sinto-me por vezes perdido numa dimensão algo intemporal, por entre tanto desejo do regresso de um passado mais ou menos distante, e que traz consigo uma sensação circular, do algo já vivido que desponta por entre algo ainda a viver.
Vejo nisso a afirmação de silêncios modernos que vagueiam em nós sem destino, filhos de uma casa pródiga nunca encontrada. O regresso à infância e adolescência assume-se basicamente como o regresso bucólico a um tempo mais simples, de menos restrições e mais permissões, onde os horizontes renasciam por entre as tristezas volúveis das tempestades primaveris desses tempos. Existiam sonhos, esperanças...acima de tudo, existiam escolhas, que se tornavam maiores e mais abertas quanto mais longe se ousava ver, ou quanto mais se sentia a intensidade do viver. Volta-se, sobretudo, ao único ponto da vida onde muitas vezes se sentiu uma verdadeira felicidade e, mais do que isso, uma verdadeira conexão com uma identidade que muitas vezes, no presente, se sente perdida, algures no caminho.
A submersão nas realidades sócio-económicas diárias reduzem os sonhos, esculpem o tempo por entre a rigidez das rotinas, aprisionam os hábitos nos ditames morais do que deve ser a evolução da pessoa no seu trilho de vida, molda-se o Ser no navegar por entre cortinas de fumo permanentemente mutáveis. Temos a noção de que deixámos de ser exploradores da vida, ousados no que desejamos para a nossa felicidade, para sermos visitantes de pequenos mundos, fabricados fora de nós, e onde a circularidade da existência torna-nos nada mais do que uma gigantesca montra para poderes que não controlamos, mas cuja existência desejamos na vida diária, pois nessa existência, ainda que cénica e virtual, encontra-se um rumo, por vezes há muito perdido.
Ainda assim, assistimos a novas formas de pensar a vida, que não a da resignação ao recordar da vivência do passado. A consciência do que se perdeu começa a ser fundamental no emergir de um novo tecido social, menos fundamentado nos dogmas sociais, e mais no que se deseja buscar da nossa felicidade...consubstancia-se, no geral, no regresso a uma vida mais simples, mais minimalista de ver a nossa caminhada. De formas variadas, mais ou menos dramáticas, assistimos a quebras de laços afetivos, profissionais ou sociais, emergindo novos paradigmas de relacionamento (independentemente do tipo), trabalho ou social, mas igualmente de relacionamento com a humanidade que a todos nos une, e com o planeta que nos acolhe. Em todos esses casos, cada vez mais presentes, podemos também ver um regresso ao que fomos, devolvendo sorrisos, retomando a capacidade de escolher e de definir novos horizontes. É uma renovação mais estrutural da sociedade que, parece-me, é bem mais estimulante, bem mais geradora de desafios para nós e para as gerações futuras, do que induzir uma falsa sensação de felicidade através de uma rotina circular entre o vazio dos dias, e um desejo mais automático do que refletido de ir a uma qualquer festa, embarcar numa qualquer moda revivalista, ou ir a um qualquer ginásio para um reencontro com um passado que não volta.
Torna-se igualmente interessante refletir sobre a estrutura sócio-económica que tendencialmente nasce deste movimento. Da emergência de uma economia mais direta, colaborativa e local à economia circular, passando por reduções nas necessidades de consumo, uma maior consciência ambiental e uma redução das necessidades produtivas em organizações que cada vez mais tenderão a colocar a sustentabilidade do homem e do meio como pilares da sua atuação, é algo a ser analisado com muita atenção, numa reflexão que (apesar de estarmos perante uma tendência de médio/longo prazo) apenas depende da nossa vontade em olhar o futuro a partir do nosso ponto presente, e de não esquecermos o principal objetivo que norteia a caminhada humana. A felicidade.