Como todo o mundo, fui apanhado de surpresa pelo falecimento de Bourdain. Soube através de um tweet da CNN, e imediatamente me invadiu um sentimento de vazio, nunca preenchido pelo constante fluxo de informação que se seguiu. Sendo fã dos seus livros, da sua personalidade, duas coisas me encantavam especialmente. Em primeiro lugar, a postura de enfant terrible num mundo tão artificial quanto o da alta cozinha, onde impera a ditadura da imagem e o vazio da essência. Bourdain dava a esse mundo um colorido tão característico da sua personalidade sempre desperta, tão inquietante como inquieta, tão irreverente como criativa, um predicado apenas reservado aos génios, uma genialidade apenas reservada aos espíritos livres, que sentem e refletem o mundo que observa, os caminhos que passam, os céus que os acompanham.
Mas a principal qualidade que apreciava em Bourdain era a sua visão global do mundo, baseada nos seus aromas, nos seus sabores, e na forma como os explanava nas suas viagens. Bourdain era o protótipo do viajante de que tanto falo, viajando pelo mundo tão livre quanto o horizonte do seu sentir. Apesar da sua fama, com todos falava, com todos comia, sempre com a sua natural curiosidade, fosse no fino restaurante ou na roulotte de rua. E depois de tudo, de respirar e de usufruir de cada viagem e de cada ambiente, era imensa a forma como, qualquer viajante, sabia voltar...as suas entrevistas, as suas aparições públicas, eram acontecimentos para serem ouvidos e sentidos. Bourdain contava as suas experiências, o que sentia com elas e as lições que delas tirava, de uma forma tão profunda quanto simples. Sabia voltar, transmitindo algo, dando a conhecer um pouco mais do mundo que na visão dele era unido na extraordinária diversidade dos seus sabores, das suas cores, das suas sensações. Deixava-nos a todos um pouco mais ricos, na partilha da sua experiência, para depois voltar a partir.
Enquanto toda a informação do seu falecimento ia desfilando, dei por mim a pensar que Bourdain iria adorar conhecer o restaurante nordestino que me indicaram perto do local onde me encontrava, em S. Paulo, e que à boa cozinha tradicional adicionava a cultura nordestina e a simpatia dos seus empregados . E com toda a certeza, a simpatia dos convites que tive para experimentar pratos típicos de cozinha brasileira em casa de colegas, não lhe passaria despercebida. Embora apenas tenha tido contacto com o seu trabalho nos últimos anos, não consigo deixar partir um sentimento de perda por alguém que tinha essa forma tão simples e global de sentir o mundo, com a qual me identifico...simplesmente desfrutar, caminhar, conhecer, seja na chuva de Londres, nos pequenos povoados dos Pirinéus, ou no sol de S. Paulo, e que me despertava uma certa figura de mentor. Se alguma lição Bourdain nos deixa é a de que, num mundo que vai ficando cada vez mais tenso nas suas dinâmicas geopolíticas, não devemos esquecer o que nos une enquanto humanidade, uma simplicidade construída por milhares de anos, revelada numa diversidade que a todos nos define. Esse é o nosso caminho. O único caminho. Trilhar esse percurso pode ser algo tão simples quanto apreciar o que nos rodeia de uma forma diferente, como nosso, independentemente da parte do mundo onde estejamos.
Descansa em paz, Anthony Bourdain. Obrigado pelo mundo que nos revelaste com as tuas viagens.
Esta foi, definitivamente, uma semana dedicada ao futebol. Desesperadamente dedicada. Por entre os dias foram desfilando as buscas, as suspeições, os programas de comentário vazio ou as colunas de opinião ausente, no perpetuar de uma oportunidade...por entre a imagem e a fama daqueles que são o poder instituído neste desporto, surgem aqueles que também nesse desporto observam o timing da oportunidade de se instituírem, de se mostrarem como a imagem de um novo poder (e associada influência emergentes) por entre a oportunidade criada pela expressão das massas de que algo pode, e deve mudar no futebol.
Não sou apreciador de futebol. Já fui, já vibrei, já sofri...mas a partir de uma certa fase da minha vida decidi colocar de lado (num processo ainda contínuo no tempo presente) o que de acessório nela residia como uma falsa sensação de conforto...pertencer a um clube, a uma tribo, a um conjunto de pessoas com desejos e ambições comuns, faz nascer nas pessoas uma sensação de conforto, de objetivos a perseguir sem serem por eles quase semanalmente cobrados. Assim como o saudosismo encanta e, provisoriamente, liberta das rotinas diárias que nos envolvem numa dinâmica circular de vida, também estes fenómenos de carácter mais tribal, evocando tempos onde a humanidade por instinto procurava vislumbrar caminhos de sobrevivência, inferem sentimentos de união primária, direta, intensa, de uma luta por algo ou alguém, ambos muitas vezes ausentes da vida diária, muitas vezes imersos num conjunto de triunfos e derrotas que se sucedem a um ritmo mais rápido do que se pode tolerar...
Consubstanciado em centenas de anos de evolução, onde muitas vezes foi encarado com um ambiente de refúgio à parte das dinâmicas da história, o futebol foi cultivando ele próprio o seu lugar à parte na sociedade, criando um poder social e económico cada vez maior, que se foi transpondo para o poder político e, muitas vezes, para o poder judicial (já não falando no albergar sobre o seu seio de grupos e situações de legalidade muito questionável), sendo que todo este fenómeno é circularmente, e de forma consentida, alimentado e ampliado por novas realidades emergentes de cada era, que perpetuam este movimento. Tudo tolerado pela crescente necessidade popular de sustentar este poder a que verdadeiramente não pertence, mas que sem dúvida o mantém. A saudável irracionalidade vivida dentro de um estádio de futebol passa para fora dele, prolongando-se para dentro da semana, sentindo-se seja no ambiente familiar, profissional ou social, nunca deixando de estar ausente nos tempos de repouso e convívio familiar ou social, nas conversas com os colegas, no tempo que passamos no trânsito...tudo alimentado por uma dinâmica comunicacional agressiva e por vezes hipócrita, principalmente no que toca ás televisões, que associam o mea culpa do seu papel em termos deste cenário à alimentação do mesmo. Não nos esquecemos, no meio de todo este redemoinho, no papel que o futebol tem na formação dos nossos jovens, sejam eles atletas ou adeptos, e da forma como estes absorvem toda esta cultura de emergência e manipulação do poder por um lado, e de arbitrariedade dos relacionamentos no outro.
No meio de tudo isto, perde-se o que de bom existe no futebol...a tal "irracionalidade de estádio", o convívio salutar entre pessoas que, embora "rivais", partilham o prazer de argumentar e de descomprimir da pressão dos dias, o envolvimento da família...seria na perceção do que se perde em termos do que de bom existe no futebol, que deveria preocupar os adeptos, não apenas do Sport Lisboa e Benfica, Sporting Clube de Portugal, Futebol Clube do Porto ou qualquer grande clube por esse mundo fora; mas igualmente os adeptos dos pequenos clubes...são eles, juntamente com os jogadores, os treinadores e suas equipes, que verdadeiramente movem toda esta indústria que outros tentam levar ao limiar da loucura, afastando-a dessa sua base mais estrutural, ao mesmo tempo que a cativa numa dimensão irracional.
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